Tuesday, January 30, 2007

Regresso



Nunca esquecerei o dia em que parti, ao lado de meu pai. Junto dele, criança, levado pela sua mão. Antes disso, a mãe deu-me um beijo e, no coração, pôs-me um desejo de voltar.

Foi marca que me sangrou, para sempre, com as memórias bárbaras, perdidas pelas partidas do mundo. Saído de minh’aldeia natal, já sozinho chorei a bordo dum vapor que me levava, ignorava eu para onde. Lá, no tal destino, estava um tio à minha espera, para me dar trabalho e verdejar a maturidade. Depois, precoce adulto, fiz-me à aventura qual emigrante sem paradeiro – desvirginando todas as selvas, esgravatando à unha todos os filões, construindo cidades para outros. Não tive descanso nem remorso. Desalmado, inumano. Em frente. Escravizei, desenraizei. Possuí, desapossei. Sem nada. Envilecendo, envelhecendo com o único tesouro de uma ânsia primordial.

Regresso a casa. Àquela infância, ou nesta actualidade?

24JAN2007

Cansaço

Todos os caminhos vão dar a qualquer parte. Todos os pés precedem passos. Todos os passeios já foram percorridos. Todos os bancos retemperam dos cansaços.

Ainda há destinos que se encontram com entraves. Ainda há rumos que não foram construídos. Ainda há pernas vergadas pelo esforço. Ainda há corpos anónimos, perdidos.

Nesta cidade contrafeita pela pressa. Nesta cidade que tem dentro as suas margens. Nesta cidade virada contra o tempo. Nesta cidade em labirintos e muralhas.

Uma sombra acolhe-nos por fim. Uma réstia de luz traça um princípio. Uma espera traz consigo solidão ou refúgio. Uma paragem silencia a voz do precipício.

Porque nem sempre as palavras dizem tudo. Porque nem sempre é ausência o que se poisa. Porque nem sempre sente quem se senta. Porque nem sempre o olhar desvenda alguma coisa.

José de Matos Cruz 22JAN2007

Pesqueiro

Imperceptível, sob o espelho líquido, mantém ainda a âncora. Mas já sem préstimo, perdida entre o lodo, inerte e corroída. As suas verdadeiras amarras são, agora, a própria degradação de um corpo gracioso, necessário, que sulcava as ondas e atraía o peixe. Ali abandonado, sem homens e sem fainas, ao sabor funesto das marés entre o rio e o mar. Entretanto, o casco corrompeu-se. A água entrou a bordo, tudo foi invadindo, destruiu-lhe as entranhas. Precário, acabou por ceder, apenas meio submerso junto à margem pouco profunda. Aquele túmulo incompleto, volúvel. Perto de areias e pedras poluídas.

Que terrível desolação. À distância, do outro lado, persiste a vivência e a labuta. Uma vista colorida, mutante, indiferente, através dos raios de sol e das luzes à noite. Através das brumas, dos ventos, das chuvas, das tardes, dos tempos, inútil, lança o seu lamento silencioso. Pode um barco ceder, cegar?

José de Matos Cruz 19JAN2007

Cadeira

Trinta anos. Suponhamos que fico trinta anos aqui, assim, sem que me venham retirar. O que poderá acontecer? Ora, estarei decrépita, ferrugenta, já sem cor nem lona, uma mera carcaça asquerosa. Provavelmente não existirei mesmo, nem as árvores nem o pequeno lago à minha frente.

Trinta horas. Há umas trinta horas que me armaram, realçando esta paisagem aprazível mas tão solitária. Durante a noite, abandonaram-me. Cheguei a recear que me tivessem esquecido. Com os humanos nunca se sabe, e eu só posso exibir a minha elegância, o melhor do meu aspecto.

Trinta minutos. Hoje, finalmente, ao princípio da tarde, chegou um sujeito e sentou-se. Em calções, acabado de almoçar. Gozando o sol. Depois, levantou-se calmamente. Foi até junto da margem, molhou o pé esquerdo e, destemido, mergulhou. Há trinta minutos que não aparece à tona d’água.

José de Matos Cruz 17JAN2007

Horizonte

Com um olhar múltiplo, procuro em vão a linha do horizonte. Ou um destino até onde hei-de ir. Ciente, cismo que todas as proximidades têm o alcance das maiores distâncias. Aqui, em quanto avisto, a paisagem é um desígnio paralelo de oportunidades aparentes. Céu e terra fundem-se no mesmo logro de uma natureza apenas, inequívoca, de texturas sobrepostas em contrastes e tonalidades. Diluindo-se para o etéreo, obscurecendo no que me é mais cerca. Além da alusão, persiste um azul de neurastenia, esvaindo-se, caprichoso. Aquém da ilusão, mal se distingue a fisionomia densa, estigmatizada de relevos, socalcos e, talvez, uma estrada. O firmamento corresponde à mística fortuita de umas quantas nuvens – quais franjas esbranquiçadas – pairando, a espairecer. A complexidade que me apela à vida está nos sucessivos recortes de montanha – as alturas, os abismos – a confrontar-me o imaginário e a jornada.

José de Matos Cruz 16JAN2007

Árvore

Ainda não sou – senão uma minúscula semente, dispersa, esparsa, com alguma origem e sem qualquer destino. Depois, ao acaso, o meu voo suspende-se, e caio sobre a terra. Entranho-me. Em torpor, ganho vulto e pulsação. Emirjo do subsolo. Eis-me a respirar. A minha seiva impele-me. Cresço. Faço-me vulto, irradio em ramos. Enrijeço. Visto-me de folhas – exuberante e exposta. Passam a notar-me. Ao sol, extasio. Com outras árvores irmanada, a minha sombra recorta-se na relva. Frondosa, habitam-me os pássaros. Habituo-me. Desafio a tempestade, quase me verga. Resisto. Assim, estou. Envelheço e permaneço, estiolando, num torpor sem tempo. Enfim, retraio-me – disforme, coberta de fungos e de musgo. Ávida e farta, esmoreço. Começo a definhar. A partir das raízes exaustas. O tronco seca-me, estala. Restam-me uns braços esqueléticos. Nua, em vertigem – soçobro, sucumbo. Enquanto estou, existirei.

José de Matos Cruz 14JAN2007